Beth Nakata entrevista Walmir Cardoso

CNA – Vimos hoje um evento com Astronomia e Astrologia no mesmo espaço e com o mesmo destaque. Existe a possibilidade de um diálogo entre esses dois conhecimentos?
Walmir: Há possibilidade, sem dúvida. O que muitas vezes acontece é que raramente encontramos pessoas disponíveis a um diálogo. Um diálogo pressupõe, a priori, que as pessoas não queiram ter razão, mas queiram pavimentar um caminho para esse crescimento. São poucas as pessoas que dizem “essas constelações podem não ter a menor existência, porque a questão é de outra natureza”; é o que o Quiroga, por exemplo, fala; e que nossas constelações são imagens, que poderiam ser outras imagens. A questão do indivíduo e de sua ação no mundo é muito mais presente na fala dele. Já outros astrólogos dizem que as doze constelações são o cânone da Astrologia, com uma chave de interpretação estanque, tornando mais difícil esse diálogo porque, na verdade, eles vêem isso como verdades absolutas, conhecimentos impositivos. No lado da ciência também encontramos pessoas assim. Como cientista posso afirmar isso, que há muitos de nós orgulhosos do que a Ciência construiu ao longo dos séculos. Portanto esse diálogo não é apenas possível, como necessário. Mas também percebo que esse diálogo vai servir para nos mostrar que Astrologia e Astronomia são áreas de conhecimento muito diferentes. Enquanto uma se ocupa, hoje em dia, não só da posição dos astros mas também da natureza, da forma como as estrelas evoluem e de como a vida surgiu, a outra se ocupa de uma chave de representação para o ser humano. Por isso, gosto da maneira como o Quiroga faz essa colocação do ser humano sendo o centro dessa questão astrológica e não a influência eventual que um astro possa produzir sobre o homem. São chaves, maneiras de interpretação, que não são terreno da Astronomia.

CNA – Ao discorrer sobre olhares diferentes para uma mesma constelação, dependendo do observador, seja ele um índio em sua tribo no Amazonas ou um habitante de São Paulo, é correto afirmar que você vê a Astrologia como um fenômeno cultural?

 O diálogo entre a Astrologia e Astronomia.

Walmir: Essa é minha hipótese. Trabalhei durante os três últimos anos com os índios Tukano, no alto Rio Negro. Sempre achei que todas as culturas da Terra tivessem percebido os planetas, isto é, os astros que mudam de posição no céu. Pensava ser quase uma obviedade ululante. Porque é muito evidente que, à medida que o tempo passa, alguns astros mudam de posição, enquanto outros permanecem fixos. Essa hipótese é falsa. Estive com esses índios em épocas diferentes, e em uma delas mostrei o planeta Júpiter, explicando que é um planeta, em minha cultura, que estava naquela posição, iria para outra e depois retornaria. Eles diziam “hum hum”. Fui embora e retornei meses depois, perguntando se haviam percebido Júpiter mudando de posição. Responderam que sim, mas vi que aquilo não fazia parte da cultura deles, portanto não registraram o caminhar celeste jupiteriano. Os símbolos que eles percebem são outros, são o aqui e agora, são os das constelações que eles desenharam. Para eles os planetas são apenas brilhos que originaram outros brilhos (as estrelas). Reconhecem apenas Vênus, conhecidos e identificados como dois irmãos, um visto depois do pôr do Sol, Doe, e outro antes do nascer do Sol, Cérebi. Dizem que os dois irmãos brigaram e não podem se ver. São filhos do deus da alimentação. Isso é de uma riqueza cultural enorme e que não tem dentro de si nem a Astrologia tradicional, nem nenhuma espécie de Astrologia. Ao mesmo tempo tem uma riqueza extraordinária dentro de cada filigrana dessas culturas, porque se sairmos dessa cultura e formos para outra, a 100 quilômetros dali, o céu é diferente e outras constelações são consideradas. Todas essas contribuições, somadas às contribuições culturais trazidas pelas várias Astrologias, é que trazem uma diversidade que, em minha opinião, é muito mais interessante que os símbolos só de uma ou outra cultura, apenas para ficar no Ocidente. Mais interessante que perguntar se planetas influenciam ou não o destino, esse debruçar-se sobre seu universo é muito rico, percebendo as nuances dos céus de todos esses povos. No Brasil existem 180 línguas diferentes, além do português. Não diria que temos 180 céus diferentes, mas pelo menos uma dezena de céus diferentes. É isso que os pesquisadores de etnoastronomia estão fazendo, resgatando um céu que foi criado no seio de cada uma dessas culturas, correspondente às cosmovisões dessas culturas.

CNA – Olhar o céu estrelado é uma experiência única. Hoje, aqui em São Paulo, essa possibilidade praticamente inexiste. Há uma relação entre não olhar para o céu, admirando as estrelas, e a forte característica de egocentrismo ou de individualidade da geração atual?
Walmir: Sem dúvida que olhar o céu estrelado ativa nosso atavismo, nos religando ao cosmos, aos planetas e à humanidade. Experienciei isso levando turmas de alunos adolescentes para observar o céu no interior do Estado. Enquanto observavam a constelação de Virgem, eu contava sobre o mito, relacionando ao plantio no hemisfério Norte. A espiga de trigo que a virgem segura, representa aquilo que a terra dá, ciclicamente; a possibilidade de refazer o contrato que temos com o planeta. Isso é importante num lugar onde neva, com pouca oferta de alimento em determinado período, e como isso é diferente quando estamos na mata atlântica brasileira, com grandes quantidades de água disponível. Quando os alunos perceberam isso, experienciaram um atavismo, o olhar o céu e sentir um pouco de medo, de desejo e de prazer. Como se uma memória interna fosse ativada e dissesse “está anoitecendo, cuidado com os bichos”. Por isso, não podemos negligenciar isso, pois olhamos para o céu e desenhamos nossa cultura, nossos anseios. Por isso, a Astrologia é importante, por estar dentro de um contexto sócio-cultural e ambiental. Enfim, o céu é um pano de fundo para a gente falar da gente.

Walmir Thomazi Cardoso, físico, mestre em história da ciência e doutor em educação matemática. professor da PUC-SP e integrante da Escola Municipal de Astrofísica. diretor da Sociedade Brasileira para o ensino da astronomia.